
Nós
Vamos Invadir A Sua Praia
O
mercado brasileiro de jogos digitais cresceu. E, como qualquer
terreno fértil, começou a atrair todo tipo
de "investidor", oportunista e colonizador de
ocasião. Hoje, três forças distintas
orbitam e, de certo modo, tentam dominar o ecossistema dos
games no país: a pirataria, o audiovisual e as bets
(apostas online). Cada uma delas com suas intenções,
contradições e métodos próprios.
E, no meio disso, o desenvolvedor brasileiro independente,
vulgo indie dev, tentando sobreviver, criar e ser ouvido.
Pirataria,
o velho fantasma de sempre:
Para
quem começou a fazer ou jogar games nos anos 80
ou 90, a pirataria não era apenas
uma sombra, era a regra. Disquetes, cartuchos clonados,
CDs gravados e sites de torrent sempre estiveram no DNA
cultural do gamer brasileiro. Ela foi, paradoxalmente, o
vilão e o herói: minou o mercado formal, mas
também formou uma geração inteira de
jogadores, desenvolvedores e consumidores. No começo
dos tempos ela veio envolvida na falácia da localização
mas não demorou para perder os pudores de atuar como
cópia descarada e venda ilegal.
Hoje,
a pirataria é menos física e mais difusa.
Em tempos de Steam, Game Pass e Epic Games Store, ela migrou
para o digital, disfarçada em contas compartilhadas.
Mas seu efeito continua o mesmo: corrói o valor percebido
do trabalho autoral. Para o desenvolvedor brasileiro, que
já luta contra a desvalorização crônica
da sua produção, ver seu jogo pirateado no
mesmo dia do lançamento é como levar um soco
e ainda ouvir que "é publicidade gratuita".
Pior:
a cultura da pirataria criou uma mentalidade de consumo
que associa jogo nacional a produto gratuito ou secundário.
E enquanto isso persistir, o produtor local continuará
em desvantagem, tanto moral quanto financeira.
Audiovisual,
o primo rico que quer brincar também:
Nos
últimos anos o setor audiovisual (leia-se cinema
e TV) descobriu que games também dão status,
prestígio e dinheiro público. Com a expansão
das leis de incentivo e dos editais culturais, muitos produtores
tradicionais do cinema começaram a se aventurar no
território dos jogos, enxergando ali uma nova fronteira
para captar recursos e "diversificar o portfólio".
Em
tese, isso poderia ser ótimo. Games e audiovisual
compartilham linguagens, narrativas e técnicas. Mas,
na prática, há uma tensão latente:
os profissionais do cinema chegam com estrutura, influência
e discurso pronto, mas muitas vezes sem compreender as especificidades
do desenvolvimento de jogos. A lógica industrial
e hierárquica do cinema colide com a natureza experimental
e interativa da criação de games.
O
resultado são projetos que se vendem como jogos,
mas funcionam mais como filmes esquizofrênicos ou
produtos híbridos criados apenas para cumprir metas
de edital. Enquanto isso, estúdios realmente dedicados
à linguagem dos games ficam à margem, competindo
por migalhas de financiamento.
Bets,
o novo império do vício digital:
E
então vieram as bets, o bicho-papão moderno
do entretenimento digital. Impulsionadas por influenciadores,
streamers e uma máquina publicitária milionária,
as plataformas de apostas online transformaram o jogo em
mercadoria instantânea.
Essas
empresas não produzem cultura, não constroem
comunidades e não fomentam criatividade. Elas exploram
o mesmo público dos games, jovens conectados, sedentos
por estímulo, e desviam a atenção (e
o dinheiro) para um entretenimento que se disfarça
de diversão, mas opera como um cassino portátil.
A
presença agressiva das bets em canais de games, podcasts
e eventos não é casual. Elas querem se apropriar
do imaginário gamer, colando sua marca ao discurso
de liberdade, vitória e conquista. É uma simbiose
perigosa: enquanto o desenvolvedor luta para vender um jogo
a R$ 30, as bets investem milhões para convencer
o público a perder o mesmo valor em um clique.
Três
forças, um mesmo alvo:
Pirataria,
audiovisual e bets parecem mundos distintos, mas compartilham
uma ambição comum: controlar o fluxo de atenção
e de dinheiro do público gamer brasileiro. Um faz
isso desvalorizando o produto (pirataria), outro institucionalizando
o discurso (audiovisual), e o terceiro colonizando o desejo
(bets).
No
meio disso, o desenvolvedor nacional precisa se equilibrar
entre resistir e se reinventar. Criar valor real, sem cair
nas tentações fáceis do discurso moralista,
das verbas públicas mal direcionadas ou dos patrocínios
duvidosos.
O
caminho talvez esteja no resgate da essência que nos
trouxe até aqui: independência criativa, autenticidade
e senso de comunidade. É preciso entender que o mercado
não necessita de salvadores nem de grandes parceiros,
mas de quem realmente cria e respeita o jogo como expressão
cultural.
Enquanto
piratas continuam copiando, produtores de cinema tentam
filmar com controle de videogame e sites de apostas despejam
dinheiro em anúncios, os verdadeiros autores seguem
fazendo o que sempre fizeram: criar mundos, personagens
e experiências que valem mais do que qualquer bilhete
premiado.
E
nem adianta se iludir com leis e regulamentações
oficiais ou até mesmo apoio de governos via movimentos
com colorações políticas. Nada disso
serve efetivamente para criar e manter um ambiente saudável
para a criação e inovação cultural
brasileira. No fundo, o que a gente ainda precisa é
de um movimento cooperativista mais forte e principalmente
transparente, imune aos aproveitadores de plantão.