Agora que você percebeu
que tem mais coisas entre o céu e a tela do monitor
do que sonha a nossa vã filosofia, está na
hora de separar os homens de verdade das criancinhas. A
essência da interatividade dos jogos é justamente
o grau de imersão que ela provoca
no jogador, manipulando as variáveis dos jogos, das
quais a narrativa emergente é uma
das mais expressivas.
Por que? Porque é assim
que nós somos (ou pelo menos a grande maioria de
nós). Nós somos desafiados pelas possibilidades
da interação e com isso mudar o rumo das coisas.
Influir nos resultados é extremamente tentador. Influir
na construção das regras primárias
é ainda mais desafiador para quem mantem alguma atividade
cerebral de relevância. Por que? Porque gostamos de
ser deuses. Gostamos de criar coisas à nossa semelhança
e porque sempre estamos certos. É ou não é?
Um sistema autônomo,
que usa o aprendizado no lugar das definições
pré existentes pode se tornar o máximo em
termos de interatividade, em termos de imersão e
consequentemente se transformar em um bom divertimento.
O afoito, quando chega aqui,
para e pergunta: ok, entendi, mas e se o jogador espertinho,
naquele problema de passar pelo abismo, "ensina"
ao sistema que uma ponte pode ser feita com (digamos) palitos
de fósforo (dos quais ele tem uma meia dúzia
apenas)? Problemão, heim?
Depende. Depende do que entendemos
como diversão. Se é um single
player e o jogador acha divertido construir
uma ponte, para atravessar um abismo, com palitos de fósforo,
bem, quem somos nós para dizer a ele que isso não
tem a menor graça? Afinal, foi ele quem pagou pelo
jogo e seria pretensão demais fazer juízo
de valor ou de qualquer natureza, nesta altura do campeonato.
Neste caso, a narrativa emergente
é dele e não temos nada a ver com isso. Mas
se é um multiplayer amplo,
tipo mundo infinito
e realidade permanente,
ai alguem pode dizer que seria "desonesto"
criar uma regra de construção tão (literalmente)
frágil. Mas se ela vale para todos, então
voltamos à questão da diversão de cada
um.
Seja como for, parece que não
conseguimos nos livrar de algum grau de pré definição.
Algo que não seria bem uma narrativa embutida, mas
um tipo de regra geral. Assim como a gravidade, que norteia
toda a formação do universo. Essa regra ou
lei poderia estabelecer que:
1)
você não cria algo do nada;
2)
você não cria nada menor que a soma dos componentes;
3)
você não cria nada mais pesado ou mais leve
que a soma dos pesos envolvidos.
Desta forma, se for possível
estabelecer que para ultrapassar o abismo é preciso
algo tamanho grande e pesado o suficiente para aguentar
a travessia, então qualquer coisa que o jogador criar
poderá ser usado com esse propósito. E na
verdade, isto é verdade.
Ninguém precisa construir
efetivamente uma ponte sobre o abismo. Basta algo que aguente
o nosso peso e que seja grande o suficiente para ir de um
lado até o outro (inclusive algo feito com palitos
de fósforo).
Resta a questão da habilidade.
O jogador tem conhecimento de como fazer aquilo que ele
pretende fazer? Know-how instantâneo,
a lá Matrix?
Como obtemos conhecimento? Apenas fazendo e depois fazendo
analogias?
Este é um dos aspectos
bem explorado nos RPGs: cada personagem
tem determinadas habilidades, ou seja, ele sabe fazer isso
ou aquilo. Ou aquilo que ele quer fazer está dentro
do escopo daquilo que ele sabe fazer. Mas, RPG
não é para qualquer um, não é?
Pelo menos não sem um bom mestre (se é que
entende do que estou falando).
No mundo dos FPS,
aparentemente todo jogador já nasce sabendo atirar,
matar e explodir, afinal é tudo que ele precisa para
completar as missões. De certa forma, as narrativas
embutidas nesses jogos são molduras dispensáveis
para a imersão, pois já fica estabelecido
o básico.
Por exemplo: invasão
alienígena; matar; matar; explodir; abrir portas;
matar; correr; matar. Construir, de fato, nesse tipo de
jogo é algo extremamente complexo pois além
do conceito (objeto conceitual) é preciso o correspondente
físico e isso seria gastar recursos de forma exponencial
em algo que, talvez nem fosse usado pelo jogador.
Tudo, nos jogos, se resume
portanto a uma solução de compromisso, ou
seja, é possível adentrar certas estruturas
complexas, desde que não fique faltando recursos
em outros aspectos (também importantes) do jogo.
Afinal, o jogo é o somatório de suas qualidades
(boas e ruins) e não apenas um determinado aspecto
(relevante ou não).
Eu quis chegar até esse
ponto da discussão, não para provar a você
(leitor) que a narrativa emergente é mais importante
que qualquer outra coisa, que a imersão é
o tchans ou que jogos cabeça são os mais divertidos.
Nada disso. Apenas quero mostrar que além do balanceamento
dos aspectos visuais, sonoros, e conceituais de um jogo,
surpreender o jogador é sempre uma boa forma de elevar
o conceito do seu produto.
Uma excelente trilha sonora
pode surpreender; um excelente visual idem; um excelente
roteiro, uma jogabilidade fora do normal, um desenvolvimento
inesperado na trama e até mesmo uma exuberante narrativa
embutida podem dar aquele destaque que fará a diferença
entre o seu jogo e os jogos de outros milhares de produtores.
Pode ser o destaque que produza no jogador o desejo de buscar
a melhor de todas as narrativas emergentes (que no final
vai ser dada muito mais pela imersão que ele atingir
do que qualquer outra coisa).
Buscar a compreensão
e o entendimento de como esse moderno entretenimento funciona
naquilo que podemos chamar de "prazer de jogar"
é uma constante para quem quer respostas aplicáveis
à sua própria evolução técnica.
Ok, dirão muitos, mas
a pergunta inicial vai ficar sem uma resposta completa?
Seria impossível então termos um jogo sem
narrativa emergente?
Realmente eu não sei.
Mas sei o seguinte: a mãe de todas as redes nos trouxe
um universo de possibilidades do qual apenas arranhamos
ligeiramente a superfície com os MMOs. Se fosse só
isso já seria um bocado de coisas, mas nem começamos
ainda a pensar no potencial à nossa disposição
e, tal qual o comando de um mestre de RPG, um jogo agora
passa a poder ser ele também um mundo infinito e
uma realidade permanente, ainda que não seja nem
massive, nem multiplayer e menos ainda online.
Nota:
com esse artigo encerro a série de três que
se propôs lançar a discussão da imersão
e da narrativa emergente como fatores preponderantes no
moderno entretenimento digital interativo. Sei que muitos
leitores não entenderam quase nada do que escrevi,
mas lembro a todos que é realmente complicado expor
e propor coisas novas, sem bons exemplos como suporte. Mas
se o assunto é novo, não temos ainda bons
exemplos. Ou então é simplesmente ignorância
do autor e/ou sua total incapacidade de expressar proposições
inovativas.