Cadê nossa identidade cultural?

Texto publicado originalmente no site GameReporter, no início dos anos 2000.

É um fato conhecido por todos nós de que dispomos de pelo menos dois bons produtos de exportação, que embutem aspectos da cultura brasileira: música e novelas de televisão. Onde esses produtos entram, levam com eles um pouco do nosso modo de ser, de ver as coisas, o mundo e principalmente do nosso jeito alegre e descontraído.

E nos jogos de computador? Em nossos jogos? Nos jogos feitos aqui mesmo, no Brasil? É possível identificar algum traço cultural brasileiro neles? Daria para distinguir, num lote de jogos, aquele que é produto genuíno brazuca?

Antes de entrar nesta questão é preciso fazer uma observação: identidade cultural não quer dizer folclore nacional e eu não estou falando necessariamente de um jogo do saci pererê e muito menos no jogo da mula-sem-cabeça. Estou me referindo àqueles traços que distinguem claramente um jogo japonês de um jogo americano, por exemplo.

Então, voltando, é lícito pensarmos em uma identidade cultural para jogos produzidos no Brasil, ou estamos condenados perpetuamente a repetir os modelos medievais, espaciais, etc?

Há uns 20 anos atrás foi produzido e lançado por aqui um jogo chamado Incidente em Varginha, cujo enredo se valia de um caso de especulação sobre ETs, na cidade mineira. Independentemente de ser verdade ou não (o caso, não o jogo), o jogo não apenas seguia o que era mais moderno em termos de tecnologia de construção e produção, como estava "afinado" com as tendências dominantes que viriam a seguir, em relação ao modelo FPS (ou jogo de tiro em primeira pessoa). Não fosse por uma manobra sorrateira do distribuidor, teríamos um FPS 3D brasileiro antes mesmo de Dooms e Quakes dominarem o mercado completamente.

De lá para cá tivemos clones dos mais variados modelos americanos de sucesso, mas os temas nacionais praticamente desapareceram de cena. A mais recente investida (parcial) neste campo foi o Erínia, que por diversos motivos operacionais não obteve sucesso no mercado de jogos médios ou de ponta (os jogos conhecidos como AAA).

No entanto, o que importa é definir se o traço cultural é realmente relevante para um jogo brasileiro fazer sucesso por aqui (e ter pelo menos algum diferencial quando for exportado). Por exemplo: o fato de falar português não nos impede de termos bandas brasileiras de rock fazendo sucesso. No entanto esse rock não resulta em um bom produto de exportação e seu sucesso por aqui nem se compara ao sucesso das demais linhas musicais "nativas", como samba, pagode, sertanejo, mpb, axé, etc...

Da mesma forma se diz do cinema brasileiro que, quando se mete a fazer filmes imitando Hollywood, acaba sempre produzindo produtos inadequados em contraste com os sucessos que obtém quando produz filmes na mais pura linguagem brasileira (aliás, da qual temos uma vasta tradição de bons produtos).

Será que isso vale para o mercado de jogos? E se vale, por que razão nossa produção é tão calcada em modelos já conhecidos e amplamente explorados por produtoras em melhores condições estruturais, financeiras e estratégicas do que as nossas? Onde estaria o problema, afinal de contas?

Se traçar um paralelo com o futebol, podemos avaliar que falta aquele trabalho de base, feito ainda na formação dos futuros profissionais e lançado ao maior número possível de pretendentes. Os cursos de formação, extensão e pós-graduação em jogos seriam um primeiro lugar para o fomento de idéias inovadoras. Sites, listas de discussão e blogs seriam outros importantes pontos a serem observados.

Seja como for, é preciso não apenas debater o assunto como tentar reverter logo esse quadro de absoluta aridez, em relação à cultura brasileira presente nos modernos jogos de computador. Pelo menos naqueles feitos por aqui mesmo.

Em tempo: o único jogo de luta conhecido e que é baseado na capoeira brasileira, foi feito por um estúdio americano.