A história de João

Este texto foi escrito em 2003, numa lista de discussão sobre desenvolvimento de jogos, onde se reuniam vários importantes criadores de jogos e as discussões giravam sempre sobre "jogo bom vende".

João era um jovem audacioso, corajoso, ambicioso e mais alguns "oso". Tinha passado toda a sua adolescência lendo sobre carros e então decidiu que seria um "construtor".

Pegou o carro de maior sucesso de vendas do momento e analisou-o: carros são feitos de aço e borracha, logo, usando aço e borracha eu farei um carro igual, pois assim fazem os grandes construtores.

Entrou para a faculdade de engenharia mecânica e estudou no mínimo 12 horas por dia, até se formar. Montou uma pequena oficina, comprou aço e borracha e montou seu carro. Foi um desastre. O carro era de fato feito de aço e borracha, mas com uma aparência de arrepiar.

Desiludido, já pensava em abandonar seu projeto de vida quando um amigo, que havia acabado de comprar um carro zero quilômetro o encontrou. Perguntou João, ao amigo: qual foi o critério que você usou para decidir a compra por este carro e não por outro?

A resposta veio de forma simples: achei esse o mais bonito de todos. Arrojado, elegante, uma obra de arte.

João se animou. Rasgou os livros técnicos e matriculou-se em uma escola de belas artes. Estudou com afinco anos seguidos e voltou para a sua oficina. Algum tempo depois produziu o que achava seria a obra do século: seu carro. Todos que o viam, babavam. Coisa maravilhosa, porém com um grave defeito: não andava. Pelo menos não andava como deveria. Consumia litros de combustível por quilômetro rodado.

Desiludido, já pensava novamente em abandonar seu projeto de vida quando outro amigo, que havia acabado de comprar um carro zero quilômetro o encontrou. Perguntou João, ao amigo: qual foi o critério que você usou para decidir a compra por este carro e não por outro?

Respondeu o amigo: a potência. Piso no acelerador e ele responde com um ronco espetacular. Vai a 100 Km em menos de um segundo.

Entusiasmando, João voltou aos estudos e finalmente construiu a sua "máquina". Um verdadeiro bólido turbinado, movido a querosene de aviação. Foi um fiasco, porque andar com aquele carro, só em linha reta.

Desiludido, já pensava novamente em abandonar seu projeto de vida quando um terceiro amigo, que havia acabado de comprar um carro zero quilômetro o encontrou. Perguntou João, ao amigo: qual foi o critério que você usou para decidir a compra por este carro e não por outro?

Nenhum critério, respondeu o amigo. Entrei numa concessionária para perguntar onde era a farmácia mais próxima e o vendedor que me atendeu começou a falar do novo lançamento deles. Falou tanto, que fiquei impressionado. No dia seguinte voltei lá e comprei o carro.

João exultou por encontrar a resposta. Voltou aos estudos: psicologia, vendas, relações humanas e por aí afora. Voltou à oficina mas descobriu que não tinha o que vender.

Finalmente desistiu dos carros. Não queria mais ser um "construtor". Não entendia onde tinha errado. Não enxergou o óbvio, que o carro de sucesso não era resultado de apenas um aspecto isolado, mas de um conjunto deles e que agiam de forma harmoniosa com o todo. Embora para cada pessoa houvesse uma razão principal para a escolha e compra do carro, as outras razões estavam presentes também. O que é importante para alguns, pode não ser para outros. Mas o conjunto "carro" tinha que atender a um nível de satisfação igual para todos.

Mas João não era uma pessoa que desistisse da vida, então voltou-se para um segundo assunto do qual gostava muito: jogos de computador. Resolveu que seria um "desenvolvedor".

Pegou um jogo de grande sucesso de vendas e analisou-o: jogos são feitos em 3D e C++, logo, usando 3D e C++ eu farei um jogo igual, pois assim fazem os grandes desenvolvedores...

Hoje João cuida de um jardim numa fundação internacional e, nas horas vagas, defende uns trocados como motorista de taxi em sua cidade. Finalmente encontrou a felicidade.

Obs do programador: o que é que carros tem a ver com jogos?

Obs do designer: precisam inventar logo o DVDrom de 200 Gb.

Obs do vendedor: faltou um spot, no horário nobre da TV.

Obs do amigo: preciso trocar de microcomputador.

Obs do RD: margaridas e orquídeas - ambas são flores.