Fervendo o sapo bem devagar

Como acontece no experimento do sapo, colocá-lo em uma panela com água fria e ir aquecendo aos poucos irá resultar numa fervura lenta até que seja tarde demais. Assim foi com o plano Cruzado, do Sarney (então presidente da república) que dividiu corações e mentes no seu primeiro momento.

Todos os preços de produtos à venda foram congelados pelo seu valor do dia anterior à data da publicação do plano porém os insumos importados não obedeciam a esta regra. No caso dos jogos, petróleo (para os plásticos envolvidos nas fitas e embalagens), celulose e químicos para produção das fitas magnéticas, etc, foram aumentando drasticamente de custo enquanto os jogos, nas lojas, permaneciam com o mesmo preço.

As vendas despencaram e a maioria das produtoras não sobreviveu.

Algumas empresas foram pegas de calças curtas: haviam negociado a venda de quantidades astronômicas de cópias para os grandes magazines, obtendo com isso dinheiro em banco para financiar a produção. Na hora H o custo já era muito maior que o preço de venda.

Em alguns meses após o plano, durante o ano de 86, quase todas as empresas que haviam lastreado o primeiro grande momento da produção nacional de jogos estavam soterradas em dívidas ou sumariamente enterradas no limbo da falência.

No plano editorial, praticamente todas as revistas de informática da época foram para o ralo, inclusive com o fechamento da maioria delas. Era portanto um momento complicado: mesmo criando um jogo e produzindo as cópias, havia poucos lugares onde eles seriam vendidos e pior ainda: quase não havia como fazer publicidade deles.

Pessoalmente cheguei a pensar em desistir dos jogos e do mercado editorial. Retornar ao design de produtos e design gráfico mas quando uma coisa está no sangue e a paixão ferve, não tem jeito.

E foi aí que começou a surgir um modelo de vendas incrível e que esteve diante dos nossos narizes o tempo todo: venda direta ao consumidor. As revistas funcionavam como polos de divulgação e as softhouses efetivavam as vendas pelo correio, diretamente a quem interessasse.

Num momento difícil como aquele, as próprias revistas passaram a negociar a publicidade das produtoras, a ser paga em produtos, passando elas mesmas a comercializá-los. Era o modelo perfeito para produção em pequena e média escala, até que o mercado desse sinais positivos para vôos mais arriscados.


Graphos III, série PRO KIT, Digital Book, Zapper...

Neste modelo comercial, as vendas eram realizadas a partir de anúncios na revista e pagas através de cheque nominal, enviados por carta. Somente após o desconto do cheque é que a empresa produzia a cópia solicitada. Portanto, era um modelo de produção sob demanda, 100% financiado pelo consumidor final e sem a necessidade de intermediar recursos financeiros em bancos. Um achado e tanto e que salvou muita gente do limbo.

Aos poucos as produtoras começaram a respirar com mais calma e a propor novos jogos nacionais originais, porém o cenário comercial era ainda caótico.

Do ponto de vista legal, ainda não existia uma definição clara do que era software. Produto ou serviço? Se fosse considerado produto, então o imposto a pagar seria o ICM (para o estado) e se fosse considerado serviço, o imposto seria o ISS (para o município). Como estamos no Brasil, ninguém queria abrir mão do seu naco de imposto e o sistema de venda direta ao consumidor serviu também para isso: passar à margem de toda essa discussão bizarra e surreal sobre impostos.

Moral do dia: a necessidade é a mãe de todas as soluções criativas.

No aspecto ético a coisa era ainda mais complicada, pois não existia uma lei para o software. Não se podia falar de pirataria como uma ação ilegal. Não era (e nunca foi) ético piratear mas também não era ilegal, então...

As softhouses, amparadas e abastecidas por alguns fabricantes (em especial os da linha MSX) deitaram e rolaram neste limite nebuloso do mercado. Aos fabricantes de equipamentos interessava vender as máquinas. Quanto mais, melhor e mais máquinas seriam vendidas se mais software estivesse sendo oferecido aos usuários, nas lojas.

Nunca se vendeu tanto, no marcado nacional, como naquela segunda metade dos anos 80.

Como não havia uma produção nacional que desse conta de tamanha demanda, a saída foi trazer malas e mais malas de jogos da China, Japão (e mais à frente até do Paraguai) e traduzi-los aqui ou em alguns casos nem isso.

É engraçado ler, mesmo nos dias atuais, os “entendidos” em mercado nacional dizer que no Brasil é inviável produzir para consumo interno. Não fazem a menor ideia do potencial de vendas latente que existe por aqui, bastando para isso um pouco mais de atenção aos fatos e criatividade.

Hoje podemos perceber que este foi um momento crucial da produção nacional. Teria sido relativamente fácil estabelecer as regras e normas para o mercado fluir na direção de uma indústria brasileira forte, mas não havia ninguém, naquele momento, que enxergasse isso e, obedecendo à lei no menor esforço, o que se seguiu define nossa produção até os dias atuais.

Com a revista Micro Sistemas no centro deste movimento comercial de jogos e vendas e visando salvaguardar pelo menos um pouco da produção nacional, fiz uma proposta às produtoras no sentido de que houvesse pelo menos o respeito aos jogos e programas nacionais.

Embora a pirataria rolasse solta e sem rédeas, haveria o compromisso, por parte de todos, de vender apenas produtos brasileiros originais. A contrapartida seria um melhor posicionamento dos seus anúncios na revista (da parte dos que concordassem) ou a imposição de restrições, para os que não aceitassem. A grande maioria aceitou os termos e começou então um novo ciclo de produção com a expectativa de lançamentos originais. Estávamos todos novamente criando a esperança de tempos melhores. E de fato isso aconteceu.

Essa segunda metade da década de 80 transcorreu em clima de recuperação e muito otimismo, embora pessoalmente eu tenha pago um preço bem alto pela ousadia de me contrapor à pirataria (ainda que apenas limitada aos jogos e programas nacionais). No plano comercial e em função de disputas internas na Micro Sistemas, acabei optando por me tornar, além de autor e desenvolvedor, um produtor pleno, iniciando a criação da PRO KIT, para venda e distribuição dos meus jogos.

A razão para isso é bem simples: pela primeira vez na história das publicações técnicas a principal receita de uma editora não vinha nem da circulação (venda em banca e assinaturas) e nem da publicidade (anúncios), mas de um terceiro fator: a participação nas vendas diretas dos jogos, negociados a partir dos acordos de interesses comuns.

Embora tivesse assistido de camarote, na primeira fila e recebido alguns respingos do movimento desastrado do Plano Cruzado, não hesitei em entrar de cabeça como empresário do ramo. O próprio mercado produtor começava a sofrer modificações e as vendas diretas ao consumidor (modelo que havia salvado a pátria) estava migrando novamente para o modelo de venda para lojas.

Parecia que tudo voltaria ao normal. As vendas iam melhorando a cada mês, os novos jogos e programas nacionais começavam a dar mostras de vigor comercial e o próprio governo já acenava com uma solução para a questão dos impostos. O trem estava voltando aos trilhos e todo mundo só tinha a ganhar com isso.

Honestamente não me arrependo de ter trilhado a estrada do empresário produtor mas esse caminho me mostrou uma dura realidade (já vivida também pelas gerações mais novas): quem quer fazer jogos, quando se vê exercendo a função do produtor, corrompe completamente seu tempo, disposição e ideais como autor. A verdade é que ou você faz jogos (cria, desenvolve, colabora, etc) ou você se torna o empresário que vai produzir e distribuir os jogos dos outros. Fazer as duas coisas simplesmente não dá.

Todos os meus grandes sucessos comerciais dessa época, tais como os adventures e utilitários (em especial o Graphos III e o PRO KIT zapper, ambos para MSX) foram na verdade desenvolvidos pouco antes de me tornar produtor. Isso sem contar o fato de que, para os negócios, não há nada pior ou menos eficaz do que ser o produtor dos seus próprios programas. Deveria haver uma lei contra isso e assim salvaríamos excelentes autores da morte prematura como empresários.

Mas o pior ainda estava por acontecer...

Embora com alguns pequenos problemas aqui e acolá, o mercado de jogos evoluía de forma consistente. Até que numa noite escura, logo no início de 1990, todos nós fomos dormir embalados pelas oportunidades vindouras e acordamos com 50 dinheiros no bolso.

Foi um tsunami dos grandes, chamado Plano Color e quando a água abaixou, na manhã do dia seguinte, deu pra ver que não tinha sobrado nada. Foi uma bomba de neutrons no mercado: matou a vida inteligente mas preservou as construções. Ninguém, em nenhum ramo de atividade empresarial ou comercial foi poupado do desastre.

Foi literalmente um dia para sentar e chorar.